Sexta-feira recebi um telefonema do meu pai. Ele dizia que queria levar Dora na pracinha* pra plantar uma muda de Nim, árvore indiana. Achei aquilo lindo, algo singelo e ao mesmo tempo cheio de emoção. O simples anda sempre perto dos bons sentimentos.
Dora plantou o Nim e de alguma forma reconectou as raízes da gratidão (só lembro de tia ana, quando ouço essa palavra, gratidão) com os nossos antepassados, pois - de alguma forma - já passaram pela pracinha* cinco gerações da nossa família.
Agora nesse exato instante vejo uma chuvinha bem fina lá fora. Tão fina que às vezes bate um vento e a chuva torna a subir, como se quisesse voltar pra nuvem de onde saiu. O Nim deve estar feliz da vida, bebendo sua aguinha e crescendo forte. Falei isso pra Dora, e os olhos dela brilharam de alegria.
Esse brilho me remeteu a outro olhar, o da minha avó, a "bijó lúcia" de Dora, Cauê, Malu, Nanda, Camila, Luana, Vicente e Pedrinho. Em uma fração de milésimos de segundo vi diante de mim um fio imenso, com Dora numa ponta plantando a árvore que vai crescer junto com ela, e na outra ponta minha avó, deitada numa cama, de onde se despede aos poucos, dessa vida, e das pessoas a quem sempre amou indistintamente.
Ela disse a mim e a Carol (quando ainda estava no hospital) que está feliz por estar lúcida e poder resgatar nesta vida muita coisa, aparar as arestas e de não precisar levar adiante consigo. Lembrei da avó de Saramago, que era menino quando ela aos 90 anos soltou um suspiro olhando as estrelas na soleira do quintal e disse: "O mundo é tão bonito que eu até tenho pena de morrer".
Vejo esse fio tênue e muito fino, que todos nós caminhamos, nos equilibrando com o maior cuidado para chegar lá na frente e olhar para trás, nem sempre enxergando o fim, ou no caso o início dele. Mas, podendo dar aquele sorriso largo, e ter a certeza e a alegria de lembrar que no meio do caminho foram plantadas muitas árvores.
* A pracinha é a Praça Eça de Queiroz, que ganhou esse nome em homenagem ao pai do meu pai, no caso o "bijô Ado", de Dora. Ele adorava Eça de Queiroz, e o prefeito Pelópidas da Silveira era seu amigo na época.No mistério do sem-fim
equilibra-se o planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta
(Cecília Meireles)